Fábio Guimarães Liberal
“De
que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de
que dentro de tudo há o sangue” (LISPECTOR, 2016, p.404)
Clarice
Lispector é o tipo de escritora capaz de se alimentar com recursos mínimos de
objetividade. Uma barata, trem ou ruído são mais que suficientes. Essa
habilidade de redimensionar a banalidade deu vazão a um universo
existencialista profundamente marcado pela fixação no aspecto ordinário da
vida. A galinha está entre as compulsões da autora, retratada geralmente como portadora arquetípica do
sacrifício. O fascínio pela criatura não se esgota no animal. É também fruto do
gosto pela cabidela, ou molho pardo como prefere adotar Clarice em seus contos.
A receita, preparada com o sangue da ave, aparece algumas vezes na ficção da
autora num misto de desejo e moralidade, afinal matar um animal e consumir o
seu sangue confronta os ideais pacíficos da civilidade.
Câmara
Cascudo explica que o termo “cabidela” teria surgido a partir da palavra
“cabo”, utilizada tanto para fazer referência às extremidades dos animais
quanto a seus órgãos internos. Na Portugal do século XVI, os círculos mais
ligados à corte se diferenciavam do restante da população se utilizando do
termo “galinha ao molho pardo”. Esta distinção de classe talvez esteja na
origem da variação da expressão no Brasil: enquanto a porção mais pobre do país
adotou o linguajar vassalo, a mais rica assumiu a fidalga.
Clarice
era uma mulher de classe média atraída pelo sabor perfumado do molho escuro e
pelo simbolismo que o prato carrega. A visceralidade do corpo e da alma sempre
fora seu eixo temático. Nele há espaço para o compadecimento com o fato do principal
ingrediente, a ave, possuir status desfavorável dentro da hierarquia dos
animais, mesmo entre aqueles mais consumidos pelo homem. Se por vezes a
escritora exagera na caricatura da galinha como um ser escandaloso e desprovido
de ordenamento motor, em outras lhe restitui
alguma nobreza e sagacidade. Tem consciência da pouco consideração que o
bicho tem perante bovinos, caprinos e suínos; que a coisa mais banal para o
senso comum é uma titica de galinha; que uma pessoa com comportamento sexual
promiscuo é um/uma galinha. O mesmo acontecendo no mundo anglofônico onde
chamar um indivíduo de birdbrain (cérebro de galinha) é equivalente a
tê-lo como um sujeito excepcionalmente apalermado.
É
preciso ressaltar que até os anos 1950 a galinha era um animal muito presente
nos quintais das casas brasileiras, mesmo nas cidades mais modernas. Por se
tratar de um animal de pequeno porte, o abate, pelo menos do ponto de vista
pragmático, nunca fora um grande empecilho. O atual complexo industrial
brasileiro de avicultura, desencadeado pelo processo de urbanização do país
ocorrido nos últimos 60 anos, foi decisivo para tornar a prática do abate
“artesanal” obsoleta.
O
fato de ter experienciado o abate em escala doméstica e problematizá-lo numa
época em que era comum a prática ressalta a sensibilidade de Clarice para com
os animais, embora não no sentido moral da ética animalista contemporânea e sim
dentro de uma perspectiva mais íntima que busca refletir sobre a tradicional
oposição entre corpo e alma. Afinal, o gênero de Clarice não permite romancear
a vulnerabilidade da galinha para ilustrar uma opção pelos mais fracos ou para
direcionar críticas a estrutura produtiva da carne. O bicho incorpora, pelo
contrário, a ambiguidade de tornar aceito o caráter violento da vida e ao mesmo
tempo considerar a truculência um desvio de conduta. Ao representar o fatalismo
impresso em determinados impulsos humanos, o destino culinário da galinha
oferece o lado conflituoso dos nossos anseios por civilidade devido a própria
violência que sombreia os processos civilizatórios.
Um
prato tão rico quanto a cabidela esconde um conjunto de práticas adquiridas ao
longo do tempo e um complexo simbólico a ser explorado. Certos alimentos
despertam respeito por aquilo que são capazes de aludir. O pão, por exemplo,
mesmo entre os ímpios tende a ser visto com afeição por evocar um gesto típico
da solidariedade humana. No caso do sentimento de Clarice pela galinha imersa
em seu próprio sangue a deferência parece derivar da ideia tradicional do
sangue como essência da vida, a seiva revestida de atributos sagrados e, por
isso mesmo, quando transformado em ingrediente motivo de cuidados especiais.
Seu potencial contaminante está conectado com os limites de uma ordem cósmica.
Sendo uma escritora que se impõe o trabalho metafísico, Clarice se nutre da
iguaria atroz tanto pelo desejo quanto pela metáfora.
O
sangue fora de seu curso venoso altera a ordem, ressalta a morte, nos lembra do
abate, de nossa brutalidade. Filha de refugiados de guerra, Clarice desconfia
da civilidade, da frivolidade que tende a incentivar; a capacidade de maquiar a
violência a ponto de fazê-la parecer o oposto de si mesma. O abate incomoda,
mas se o concebemos como parte da vida precisamos encará-lo para entendermos o
que é ser livre. Trata-se do esforço do artista cuja arte depende da manutenção
de qualquer fração genuína de vínculo com a força criadora. Precisa da porção
menos normatizada de seu ser. Ao comer a cabidela Clarice se percebe mais
desgarrada.
A
profundidade incerta, sem selo de inspeção, torna-se para ela uma ferramenta de
luta contra a pacificação/domesticação que a superfície das experiências impõe.
Aqui é possível associar a postura intelectual da escritora ao pensamento de
Adorno, para quem a experiência na acepção da palavra só é possível a partir do
confronto audacioso com alguma ameaça. No caso da bravata alimentar, a ameaça
está refletida na lâmina da faca, não quando o instrumento serve de picotadora
de legumes à brunoise ou julienne, mas quando desliza terrivelmente
sobre o pescoço da galinha.
Num
diálogo entre os personagens Ulisses e Loreley, extraído de Uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres, Clarice dá indícios de sua justificativa moral por
se lambuzar na cabidela. “ Claro que devemos comê-la, é preciso não esquecer e
respeitar a violência que temos. As pequenas violências nos salvam das grandes.
Quem sabe, se não comêssemos os bichos, comeríamos gente com o seu sangue”. Há
certo espanto nisso, mas talvez certa razão em indagar: será que a crise atual do
humanismo tem a ver com nossos estômagos excessivamente embrulhados.
Um comentário:
grande reflexão, um pensamento que nos coloca frente a frente com nossa realidade e de lambuja uma reposta as mazelas da humanidade contemporaneamente melindrosa.
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