domingo, 12 de setembro de 2021

A Tragédia da Paz Democrática

Por Fernando Maia. 


É no contexto da diminuição da tensão militar entre Estados Unidos e União Soviética decorrida da Détente na década de 70/sec-XX, que é possível entender o surgimento da Paz Democrática como programa de pesquisa na Ciência Política Americana (CPA). As questões militares (as mais diretas) entre as duas superpotências estavam arrefecidas e o embate ideológico, em termos de confronto claro entre visões de mundo, restabeleceu-se definitivamente, ganhando “corpo”. De um lado, um modelo de mundo que preconizava uma sociedade progressivamente igualitária, em que o coletivismo seria o fio condutor do desenvolvimento humano, mas um modelo de mundo sem muitos espaços para a auto-contestação pacífica. Do outro lado, um modelo de mundo que preconizava uma sociedade livre, em que indivíduos livres, por meio do método democrático fundado no princípio majoritário, teriam muitas liberdades, inclusive a de contestar o próprio modelo (a extrema direita ocidental dos nossos tempos adora essas liberdades, lembremos!). 

É justo nesse ponto da História que elementos da CPA descobrem/inventam “a coisa mais próxima de uma lei empírica” da disciplina que eles chamavam de Relações Internacionais, a saber: democracias modernas nunca estiveram em lados opostos numa guerra. O programa de pesquisa estava dado, a partir dessa “realidade” empiricamente incontestável, a de que democracias causavam paz. 

Sendo um pouco mais crítico, o desenho de pesquisa proposto era, na verdade, bem retardado. Pegaram um período de 20 ou 30 anos da História da Humanidade (que depois do primeiro escriba cuneiforme, já tem uns 15 mil anos de muito sangue derramado, cabeças decapitadas, intestinos eviscerados, estupros e escravizações em massa), observaram uns países, já definidos previamente pela Teoria Democrática como “democracias liberais”, dadas algumas comunidades entre as respectivas formas de organização política e chegaram “à coisa mais próxima de uma lei empírica” das Relações Internacionais. O nome é sugestivo: Teoria da Paz Democrática. Disso começaram a se perguntar sobre os porquês desse fenômeno tão sui-generis.

Primeiro, como todo bom programa de pesquisa nas humanidades, foram à Filosofia. E acharam Imannuel Kant, o iluminista mais virgem de todos, que tinha escrito um livro já no final da vida, cujo título era “A paz perpétua”. E lá estava escrito, mediante aquelas conclusões bem kantianas sobre o cosmo, que a paz no mundo seria alcançada depois que todas as sociedades fossem livres da sanha marcial dos seus governantes e, assim, os seus partícipes, livres para exercer a racionalidade, escolhessem como se daria a política entre as nações/Estados. E evidentemente, um ser racional sempre escolherá o caminho da paz... perpetuamente. Ou seja, como todo péssimo programa de pesquisa nas humanidades, os proponentes da Paz Democrática foram à Filosofia de maneira anedótica, como se para justificar intelectualmente as porcarias que iam começar a escrever. 

A História caminha e no início da década de 90/sec-XX,o modelo de mundo, cuja realização a CPA nunca quis compreender seriamente, ruiu de forma dramática. Logo, alguns ideólogos norte-americanos resolveram decretar que a História (perdão pelo H maiúsculo, mas...) tinha chegado ao fim. O modelo de mundo que se definia como Democracia Liberal (DL) tinha vencido aquele embate ideológico; por walkover, é bom dizer. Assim, numa versão norte-americana do Darwinismo Social, esses mesmos ideólogos chegaram à conclusão de que era a DL o ápice do desenvolvimento político de todas as sociedades. E agora a Teoria da Paz Democrática já tinha uma receita bem elaborada para apressar o advento desse mundo, pois ainda havia sociedades recalcitrantes, que teimavam contra a evolução implacável – por responsabilidade dos seus governantes autocratas, ditadores, tiranos, etc. Com a máquina de guerra mais poderosa que a humanidade já viu na vanguarda, a DL poderia ser exportada. Mas a década de 90 até que foi tranquila e a Política Externa Americana (PEA) seguiu espalhando o modelo político e o neoliberalismo (como modelo de política econômica) pelo globo de forma relativamente pacífica, pois por que onerar norte-americanos com impostos de guerra, quando se tinha o Fundo Monetário Internacional, não é verdade? 

Embora a História tivesse chegado ao fim, Ela continuou andando. E aí o século XXI já começou pegando fogo e demolindo uns prédios, quando um bando de wahabitas sequestrou três aviões, jogando-os contra alvos dentro do território da Democracia Liberal mais bem realizada, segundo seus próprios ideólogos, o que abalou todo o ocidente. O fim da História mal tinha durado 10 anos. Rapidamente, a Teoria da Paz Democrática assumiu sua faceta normativa como teoria de Segurança Internacional da Doutrina Bush, deixando de ser o fundamento retórico da Doutrina Clinton, para justificar as intervenções no Afeganistão (embora os wahabitas fossem quase todos súditos da família Saudi, uma família amiga) e no Iraque de Saddam Hussein. Segundo essa nova versão, esses dois Estados precisavam conhecer a DL. O Irã também foi sondado para receber a benesse, mas essa empresa pareceu não valer muito a pena, nem para a administração Bush, nem para a administração Obama, o primeiro presidente americano negro a matar civis sírios com caças Predator na História.

Soma-se a esse intento da PEA, o furor da administração Obama, quando no Norte da África, governos autoritários, porém laicos, começaram a ser contestados por seus cidadãos, que clamavam por mais liberdade. Alguns desses cidadãos queriam ter a liberdade de apedrejar mulheres adúlteras até a morte e decapitar homens que amavam outros homens. E foram esses, um pouco mais organizados do que os seus colegas democráticos, plurais e, portanto, difusos, que prevaleceram no que se chamou, num surto de histeria coletiva típico de elementos que preferem guiar a sua ação política mais por princípios éticos e morais e menos por cálculos das reais capacidades políticas e militares dos atores que estão no jogo, de Primavera Árabe. A coisa se espalhou pelo Mundo Árabe, chegando à Síria, onde Barack Obama e François Hollande resolveram armar e financiar a oposição contra Bashar Assad, que clamava por mais liberdade, oposição esta hegemonizada desde sempre por guerreiros da liberdade, que depois de matar seus antigos colegas de oposição ao governo Sírio, fundaram o Estado Islâmico do Levante, um Estado onde era clara a liberdade do governo em trucidar etnias não sunitas e mesmo grupos não-wahabitas. Quem tiver um estômago bem libertário pode procurar essas ações pela internet. 

É muito comum a ideia de que a Paz Democrática, i.e. a declaração de intenção pró democrática da PEA, é mero embuste utilizado pelas administrações norte-americanas para justificar emprego de força militar no exterior. Não se pode negar algum sentido nessa assunção. Idealismos servem para a mobilização de um público, mesmo que as motivações dos agentes que os usam sejam menos “nobres”. Mas isso não nega o caráter normativo da Paz Democrática como teoria de Segurança Internacional, aliás, até enfatiza. Por outro lado, a democracia, ainda que seja como método, foi vivenciada no Afeganistão e no Iraque. Afinal, houve eleições com uma série de partidos concorrendo, com formação de legislativos e de governos, dentro de regras minimamente respeitadas pelos atores em jogo. Talvez essa última frase contenha alguma ironia e eu precise alertar que a morada de Satanás está justamente nos detalhes, mas certamente a ironia não supera o fato de que o fracasso de se incentivar o surgimento da democracia (seja qual for o meio utilizado com esse intento) foi notável pelo aumento da violência que se sucedeu a esses incentivos, tanto nos países abençoados pela Primavera Árabe, quanto no Iraque, depois “anexado” ao Estado Islâmico do Levante, tornando-se o ISIS. 

E aí, chegamos aos últimos dias, quando o Talibã cercou Cabul e os norte-americanos fugiram de novo com o rabo entre as pernas de um país cuja política doméstica foram avacalhar em nome de algum ideal obscuro e iluminista (e impreciso) de liberdade – tanto no início da década de 80-sec XX, quando em 2001 – e nesse caso, depois de tutelarem uma democracia, ainda que apenas no método, em que concorriam partidos permitidos pela PEA. A expectativa inicial de um banho de sangue sectário, felizmente até agora não se deu, mas já ficou o altíssimo custo de vinte anos de banho de sangue e dinheiro. 

E se vale como um post scriptum, a utilização da analogia da forma literária que se consolidou na democracia ateniense no século V a.C., reconheça-se, é um clichê. O teatro ateniense tinha uma clara missão didática, que recomendava o controle do pathos, já que era o pathos a situação que levava os personagens a se envolverem em histórias de violência e sangue. As historinhas da Política Externa Americana acima contadas são de violência e sangue. O que arrisca tornar inválidas as analogias com a tragédia é a quantidade de violência e sangue, vultuosa como nunca se viu antes.


Extraído de Macro, micro e meso política (macromicromesopolitica.blogspot.com)