Caminhando pela noite de minha
cidade insalubre e triste, deparei-me com um cemitério de muro largo, alto,
altíssimo e largo; pensei: por que (ou, quem sabe, pra quê?) tantos muros em
locais de morte e decomposição? (Não entrarei no fato dos furtos aos que já
estão bem mortos; bem mais que nós!) Mas será que nem na morte estamos livres?
Depois pensei:
Pergunta estúpida, sei sim, mas a
vontade era de ultrapassar aquele muro quase intransponível... Depois me vi
escalando a muralha da mortandade e de repente estava eu, lá em cima,
contemplando e sentindo o avizinhamento da morte. Não saltei como queria. –
Planejava um salto mortal quase ornamental. – Apenas olhei dentro do universo
das covas e lápides que conseguia avistar com minha vista vazia e a pouca luminosidade
que a lua proporcionava naquele momento.
Sentei em cima do tal muro e sorrateiramente
me apareceu um gato! Era um gato malhado como uma vaca e com um cavanhaque que
acompanhava todo seu bigode. Dizem por aí que gatos têm tudo a ver com os
mortos... Desde os egípcios, dizem. Nunca gostei muito de gatos e nunca pensei
muito na morte (não dessa forma), se bem que achei o momento propício pra
meditar.
Por incrível que pareça acabei
pensando em uma política da liberdade. Sempre me soou bacana a idéia de que ser
liberto é nunca ter o que fazer; ou melhor, não ter que fazer nada... Mais
ainda, de também não ser obrigado a nada! A política tal qual a sonhamos
deveria partir de nossa pulsão de liberdade, de modo que garantisse ao indivíduo formas inquestionáveis de manter-se livre no mundo.
Então perguntei ao gato, que me
revelou se chamar Radote:
– O que é liberdade, heim, gato?
– Um desejo do símio humano que
entende a finitude e a evita.
– Então, ao contrário da vontade, do
desejo, a liberdade é sempre finita?
– Das mais finitas das categorias
humanas. Em tudo ao redor uma corrente, dizia o francesão lá. O fato de ser
escravo da própria volição é um indicador.
– É, gato Radote, a independência é
coisa de poucos e muito pouca! É necessário desgarrar-se dos outros e de si
mesmo... Ser nobre e autêntico fora do rebanho é possível?
– A sociedade de onde viemos é como
a cor dos nossos olhos. Podemos até dissimulá-la com lentes, mas o fundo
original é inevitável. E é justamente ela que acorrenta. Agora vou jantar...
Assim ele encerrou nosso diálogo e
pulou para dentro do terreno funéreo; como apareceu, sumiu. E eu fiquei lá
pensando sozinho...
O homem de espírito livre,
primitivo ou do futuro, mesmo que com boa parte da sua liberdade comprometida
com os outros e com ele mesmo, tem o direito de tentar Ser o que se É. Os
mortos da antiguidade (quase que paleontológicos) foram mais libertos e menos
comprometidos com a liberdade que nossos mortos. Onde entra então nossa fúnebre
ontologia política nesses termos metafisicamente estranhos? Cosmologicamente
estou convencido de uma idéia inerente ao nosso jogo físico e entrópico no
mundo sensível, de que a liberdade é só mais um passo para desordem, ou para a política,
desde que sejamos livres políticos e de que morramos politicamente também...