sexta-feira, 10 de agosto de 2007

METADE DO EGO DE DEUS

PARTE PRIMEIRA

Ele estava em seu quarto e podia se dizer que dormia um sono leve e tranqüilo, ou talvez nem dormisse!

De súbito se levanta e vai até a porta, mas antes, como de costume, veste sua indumentária usual. Ao girar a maçaneta e pôr os dois pés para fora do quarto, percebe que está num ambiente completamente desconhecido. Um corredor extenso e quase sombrio. Encimesmado e sem entender a causa tenta retornar ao quarto imediatamente; e ao abrir a porta por onde havia saído, que já não era a porta do seu quarto, encontra enormes escadarias!

Ainda não entendendo percorre o longo corredor, sem aparentar pânico ou angustia segue à procura de uma saída. Quase no final do corredor uma sensação o faz parar e olhar para trás. É quando enxerga uma mulher parada que parece não ter saído de lugar algum – Ela parece bela e volumosa, vestido longo e vermelho, cabelos compridos e ondulados, seios de circular fartura – e Ela, indiferente a sua presença, entra pela porta onde iniciara seu enigma.

Ele corre e entra pela mesma porta. Imagina fareja-la descendo as escadas rapidamente. Só encontra degraus e portas que levam a outros corredores similares...

Chega! Vai ao corredor novamente e encontra outro lance de escadas, porém diferentes. Percebe um velho homem sentado no primeiro degrau – aparenta um mendigo, cabelos assanhados e barba mal cuidada, faltava-lhe dentes, bebia cachaça e era bêbado – o homem ergue-lhe o copo e bebe como se lhe oferecesse um brinde, Ele aproxima-se e pergunta:

– Senhor, não sei como vim parar aqui. Que lugar é este? Acho que estou perdido. Como faço pra sair daqui?

O homem, preparando mais uma dose, responde sem tirar os olhos do copo de aguardente; sua fala é grave e de difícil compreensão:
– Saída... A saída deve estar dentro de você, eu acho...

Ele, meio indignado e quase irritado, retruca o indivíduo e sua filosofia de botequim:

– Dentro de mim! Quem é você pra me dizer o que eu devo ler?

Não sabe ele porque falou aquilo, e pela primeira vez fica assustado naquele local.

– Eu? Eu sou Deus!... (fala o velho rindo e bebendo a cana e depois rindo novamente). – Sou Tudo! Ou metade Dele... (e seu riso é honesto e quase cativante).
PARTE SEGUNDA

O riso ecoa em sua espinha e o faz andar apressadamente pelos corredores e escadarias daquele lugar. Sua febre de fuga é tanta que o faz cair no chão e delirar... Imagina Ele, que assim retornaria ao seu quarto. Mas seu pequeno surto não resulta em nada.

– Levante-se! (grita Ele a si mesmo).

Ergue-se e toma um susto estranho com uma mão que de repente pousa em seu ombro; para seu alívio era a mão da mulher que vira no corredor anteriormente e que do nada havia sumido. Seu olhar era doce e insinuante, sua boca parecia querer soltar um pequeno sorriso sínico ou uma gargalhada sincera de agonia. Quando Ele se prepara pra falar, ela põe a mão em sua boca e com o dedo em riste em seus lábios carregados de cor, ela sussurra:

– Xiiii! Eu vou te mostrar a saída.

Sua voz demonstrava segurança e Ele encontra a calma num misto de paz e excitação. Ela tira a mão de sua boca e o puxa pelo braço como se caminhasse com um velho amigo. Pega-o pela mão e diz com grande certeza:

– A saída está dentro de mim... (e agora Ela olha Ele nos olhos com certa frieza e sisudez). – Estou certa!

– Quem é você afinal? (pergunta Ele durante a caminhada).

– Você não lembra? Eu sou Ela. (responde sem dar muita atenção). – Esse é seu problema, sempre esquecido. Sempre com medo. Estão Todos te esperando.

De mãos dadas, Ela o conduz pelos corredores e o leva a uma sala onde está acontecendo uma espécie de festa: Todos bebem e se tocam de forma libidinosa; um negro nu toca um instrumento percussivo; há uma eterna penumbra que circunda Todos, menos Ele; Ele está em evidência o tempo inteiro, como se houvesse um refletor que o seguisse; Todos o olham enviesadamente e parecem estar vestidos com lençóis; numa única mesa, ao canto da sala, Ela está deitada e nua; Ele se sente desejado; Todos começam a vir em sua direção, lenta e pavorosamente; a música tocada pelo negro acelera o ritmo; seu coração parece pulsar em seu ventre; as mãos de Todos tentam alcançar-lhe o corpo; o temor lhe dá náuseas, suor e quase um desmaio...
PARTE TERCEIRA

Correndo, andando, pressa, pressa, correndo, subindo, descendo, rápido, rápido, devagar, ofegante... Apoiando-se pelas paredes. As imagens retornam a sua cabeça. Ele lembra Dele, de Tudo... Ele vê Ela... Ele desconhece Ele... Ele reconhece Todos...

Para e se encontra em frente à porta por onde havia saído.

– Porra, que bizarro! (explode em tom depressivo).

Por um momento exita, porém, devagar, põe a mão na maçaneta. Fecha os olhos e gira a maçaneta. Abre a porta e entra. E para sua grande surpresa, estava novamente em seu quarto!

Contempla um ambiente familiar que por pouco não esquecera. Revê suas coisas, seus livros, sua bagunça. Toca os objetos e esquece. Simplesmente esquece. Liga a TV e deita-se para relaxar enquanto assiste qualquer bobagem. Na TV, está passando um filme em que aparece um velho tomando aguardente num boteco decadente e insalubre, e que se dirige cambaleando para o banheiro. O filme acaba e sobem os créditos.

– Que escroto!!?... (fala deslizando os dedos no cabelo).

Levanta-se para desligar a TV e por um instante pensa já ter visto aquele sujeito antes. Pega uma jarra d’água metálica que está ao pé da cama, e ao entorná-la no copo percebe que está vazia. Sai do quarto, vai até a cozinha. Deixa a jarra em cima da mesa e abre a geladeira. Pega de uma garrafa e entorna vários goles com a boca no gargalo – a água escorre em seu queixo – enxuga a boca com a manga da camisa e volta ao quarto.
Ao girar a maçaneta e pôr os dois pés para dentro do quarto, percebe que está num ambiente completamente desconhecido. Um corredor extenso e quase sombrio...

5 comentários:

Unknown disse...

A geometria desse ambiente é muito estranha, fora da percepção cotidiana cartesiana... lembra a burocracia sob a ótica de Kafka, em um processo de estar-se culpado por margear certos prazeres, claustrofóbico e multidimensional, uma certa luxúria deformando o espaço.

HVB disse...

valeu, Zé Alberto!
esse é o comentário mais cabeça que eu recebi nesse blog...
abração

Anônimo disse...

Henrique, desconhecia seu talento literário. Gostei, virei mais vezes no blog. Bjo, Bruna (esposa de Gustavo "monstro".kkkk!)

Olga disse...

Alô henrique, o texto me cedeu imagens interessantes!

O que tem de sombrio, absurdo e ao mesmo tempo discutível, o Deus cultuado em primeira pessoa e terceira também. O pedaço de Deus que é um velho alcoólatra e outro a mulher(o sexo), trás algo de decadente e pecaminoso, uma confusão.
Lembrei de algumas imagens de David Lynch, algo misterioso e que tb pode muito bem ser só uma viagem, um sonho.
O cenário tem sua importância, as portas que dão pra corredores diferentes, no fim causam uma sensação de retorno, bem cíclico. Mas não sei se foi essa sua ideia...

Enfim, achei que pode ficar muito interessante!
Quando li só me veio em mente um filme, talvez pelo formato se aproximar mais, mas isso não quer dizer muito.

Beijo fera, Olga

Anônimo disse...

Ribeiro: ah deu vontade de quero mais, mas conto eh assim mesmo ne, da um susto e acaba na melhor parte.