terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

DE COMO A INGENUIDADE PODE GERAR CORRUPÇÃO

“uma esmola seu doutor/
para um homem que é são/
ou lhe mata de vergonha/
ou vicia o cidadão”


Soavam aproximadamente dezoito horas, hora da ave Maria, quando acordo com o rebuliço das mulheres na casa de praia em que me encontrava. Era dia trinta e um de dezembro de dois mil e onze e as meninas todas estavam em polvorosas por conta de uma repentina e mal vinda falta d’água.

A cisterna da casa havia secado e o desespero se abateu sobre todas as garotas, que para não ficarem odorizadas a macacas na virada do ano, ensandecidamente começaram a comprar bujões de água mineral na venda do Seu Ferreira – que fica ao lado da casa onde estávamos.

Sugeri que seria melhor tomar banho num camping que havia por perto, pois lá certamente haveria um poço. Recusaram-se! Argumentavam: “e os pratos? E os preparativos? E as comidas?” Bradavam pelos cotovelos enquanto caminhavam agitadas pela sala e pela cozinha!

Eis que surge uma solução inesperada. Era Seu Ferreira (o dono da venda onde compramos bebidas e outras necessidades ao longo de toda semana na casa de veraneio), ele tinha uma cacimba e estava disposto a ajudar-nos colocando água em nossa cisterna. Pronto, fim do problema; até que surge uma cotinha louca de cinco reais para pagar ao Seu Ferreira pela boa ação, como se devêssemos comprar a gentileza daquele velho homem.

Aquilo me agoniou por dentro com a sensação de estar sendo corruptivo e de estar agindo sob a égide do comportamento canalha do capitalismo liberal burguês. Então fui conversar com o Senhor Ferreira que me revelou que não queria nada em troca e que sempre fornecia água aos moradores nativos daquela localidade quando esta estava em falta.

As fêmeas se acotovelavam entre a cozinha e a copa, no preparo da ceia de nossa festa, quando chego com as boas novas: “Pessoal, falei com Seu Ferreira e ele não quer receber nada pela água, mas disse-lhe que já fizemos uma cota e que mesmo assim lhe daremos uma grana pela força. Minha sugestão é: a gente dá metade da grana e a outra metade compra de cerva! Né massa?”

Foi quando me demonizaram: “Eu quero ajudar e vou dar o dinheiro, cinco reais não é nada pra mim, se você quiser você pega os seus cinco de volta.” Uma delas esbravejou em alto e bom som.

Resmunguei alguma tolice sobre ter sido criado entre o subúrbio e o sertão; lembrei de um tio meu que também tem poço em casa e que em épocas de racionamento lá na zona norte se formavam filas imensas pra pegar água DE GRAÇA na casa dele; tentei lembrar de um trecho de uma música de Luiz Gonzaga (o dito cujo está na epígrafe deste texto); tudo em vão.

Depois me retirei com aquilo entalado na goela e voltei a beber para ver se descia. Fiquei preso naquilo e aquilo preso em mim, mas agora me desprendi!

O que essas meninas não entendem ou percebem é que essa visão burguesa, capitalista, liberal, das relações humanas; essa visão dos espíritos fracos e gananciosos, dos grilhões da moral material – visão esta responsável direta pela desigualdade e miséria humana! – tal visão está cristalizada nelas muito fortemente e não naquele velho. Talvez não sintam que o simples fato de pagar uma quantia exorbitante pela boa fé ou pela água (água esta do subsolo e portanto um bem de todos) possivelmente o incentiva a absorver esta mesma moral que jaz entranhada nelas!

Acho que naquela bendita noite todas ficaram com uma impressão errônea de que eu era um sujeito muito mesquinho; mas prometo que a minha intenção maior foi a de agir com justeza e nobreza para com aquele senhor, e principalmente para comigo...