quarta-feira, 11 de junho de 2008

MÍMESIS em MURIBECA

Era um domingo matinal e eles estavam a caminho da Muribeca (todos sabem como é escaldante o subúrbio nos fins de semana). Cansados do ar-condicionado e do papo Bancário que ouviam de segunda a sexta, pois num Banco trabalhavam, procuravam por conversa mole e diversão barata – o que por ali se resumia a alguns amigos e muito álcool; além do mais, sempre se espera que aconteça algo de extraordinário na periferia (como um “guizadinho com cana”, por exemplo...)!

No ônibus, Platô se queixava das centenas de ordens de pagamento que o ocupara durante todo seu expediente na sexta anterior. Ariosto, ao lado, tentava relaxar ouvindo Tool em seu walkman. O ônibus estava vazio e um sujeito “empandeirado” fazia rimas fáceis com temas que o cobrador lhe dava, e dizia sempre:

“Vô imbolá, vô imbolá
Quero ver rebola bola
Você diz que dá na bola
Na bola você num dá”

Platô reclamava disso também e dizia:
– Por Zeus, este sofista não cala a boca! Todo poeta acha que pode falar de tudo sem entender de nada e aí não para mais.
Clamou num cochicho para Ariosto, que assim respondeu:
– Com efeito, na poesia é de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade.

Enquanto isso, lá na frente do ônibus o motorista conta histórias épicas sobre si mesmo para uma dona que o olha fixamente com os seios a tremer no chacoalhar do ônibus – Estão quase marcando motel! – observa Ariosto lembrando Homero.

Platô retorna depois de ouvir aquele pensamento alto como uma pausa, e sem exitar diz:
– Talvez me faça compreender melhor da seguinte maneira: tudo o que os mitólogos e os poetas contam, não é um relato de fatos passados, presentes ou futuros? E não conseguem esse desiderato ou por simples exposição, ou por imitação, ou por ambos os modos ao mesmo tempo?

Querendo livrar-se da questão, impõe Ariosto certo argumento:
– Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Não diferem o historiador do poeta por escreverem verso ou prosa; diferem, sim, em que diz um as coisas que sucedem e outro as que poderiam suceder.

O ônibus finalmente chega a Muribeca e a sede dos dois aumentava paulatinamente. Lembraram-se que d’outra vez já haviam discutido isso no elevador do CFCH, sabiam pois a conclusão mimética que iam chegar.

Eis que ao descerem fala Platô:
– É justamente por isso que já lhe disse que a arte de imitar está muito afastada da verdade, sendo que por isso mesmo dá a impressão de poder fazer tudo, por só atingir parte mínima de cada coisa, simples simulacro. Só criam fantasmas não o verdadeiro ser...

Daí lhes aparece o “famoso” poeta Miró da Muribeca e cheio de angustias de si naquele momento recita aos dois:
“Quando o mundo acabou
eu estava dentro do Makro.André estava apenas
começado a fazer as compras.
Molho Inglês,
Caturpiri, Catch-up e mostarda.
Foi na sessão de frios.
Escureceu tudo.
Começou o fim.Não vai dar tempo nem para
fazer o churrasco.
muito menos para desmarcar.
O celular ficou fora de área
ou temporária mente desligado.
Dentro do Makro? Isso é lugar
pro mundo acabar?"
(...)

Mas é interrompido:
– Tais vendo que o poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro imaginário; por isso, sua imitação incidirá num desses três objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser. É a chamada licença poética dos tempos modernos.

Comenta Ariosto ouvindo em seguida a resposta de Platô sem pena nem demora.

– Todos os poetas não passam de imitadores de simulacros da virtude e de tudo o mais que constitui objeto de suas composições, sem nunca atingirem a verdade, o que também se dá com o pintor...

Miró indignado ressalva os cometários ouvidos:
– A arte tem que se aproximar, forçosamente, de seus arquétipos no mundo das idéias. O mundo sensível não passa de mera sombra...
(então transtornado começa a gritar loucamente).
– NÃO! Não sei se crio a representação superior do sensível ou a reprodução imperfeita do absoluto... Ou será a reprodução superior do absoluto junto com representação imperfeita do sensível.

Aquela performance não abala muito os dois, mas arranca novos comentários sobre a mímese poética...

– A poesia e a mitologia podem constar inteiramente de imitação ou apenas da exposição do poeta.
(Fala, Platô, talvez elogiando...)

– Falta menor comete o poeta que ignore que a corça não tem cornos, que o poeta que a represente de modo não artístico.
(Fala, Ariosto, talvez defendendo...)

– Mas, se o poeta nunca se ocultasse, toda a sua narrativa dispensaria a imitação.
(Fala, Platô, talvez ironizando...)

– E depois, a opinião comum também justifica o irracional, além de que, às vezes, irracional parece o que não é, pois verossimilmente acontecem coisas que inverossímeis parecem.
(Completa, Ariosto, com certeza ironizando!)

Miró avista Flavão e Betão num barzinho da frente e sai sem dizer mais nada, contudo a dupla o segue até o bar; Flavão acabara de pedir um “guizadinho maravilhoso” para acompanhar uma “meiota de cana”, quando Miró irrompe dizendo:

– Flavão, meu caro, estes nossos colegas comentavam a respeito da arte poética e se não me engano lembro de ouvir algo também sobre as plásticas...

E Platô, beliscando o guizado e erguendo o dedo indicador ao pedir uma cerveja, explica:
ou tenta:
– É o seguinte, vou tentar ser claro. Existe a idéia de leito e um carpinteiro constrói o leito, porém a idéia em si mesma ele não fabrica. O pintor reproduz a idéia de leito a qual o tal carpinteiro já copiou de deus e que estava na natureza. Assim, tais leitos se nos apresentam de três formas: uma, que se encontra na natureza, obra, segundo penso, de deus. Outra feita pelo carpinteiro. E outra mais, a do pintor. Logo pintor, carpinteiro e deus: aí temos os três mestres das três espécies de leitos. Dou assim o nome de imitador ao que produz o que se acha três pontos afastado da natureza. Assim encontra-se o poeta: três graus abaixo do rei e da verdade.

– Isso tá tudo errado, meu patrão...
Responde Flavão sem se preocupar com seu suposto grau abaixo do carpinteiro (por ser desenhista) e chamando Miró de "soldado raso" por estar mais abaixo ainda enquanto poeta.

– É, pois, verossímil que o problema nasça de um erro.
(Pensa alto Ariosto, e continua.)
– O absurdo deve ser considerado, ou em relação à poesia, ou ao melhor, ou à opinião comum.
Platô tirando mais um pedaço do guizado diz:– A natureza humana se afigura dividida em pedacinhos ainda menores, de forma que é impossível a qualquer pessoa imitar bem muitas coisas ou fazer as próprias coisas que a imitação reproduz.

– O poeta deve ser mais fabulador que versificador; porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações.
Volta Ariosto tentando tomar o garfo da mão de Platô...

Betão, até então calado, resolve entrar na conversa:
– Cês tão pensando que a gente é macaco pra tá imitando tudo?

Ariosto, tranquilamente:
– O imitar é congênito do Homem...

Miro, já com as mãos na cabeça, interrompe a todos:
– Por que vocês não voltam a conversar sobre Banco, heim? Vocês tão endoidando no CFCH!...
(e dá uma pequena pausa.)
Pronto, lá vem Jorge. Ele pode contar pra vocês como foi ser o primeiro punk de Caruaru.

Platô, retomando:
– É o poeta, o qual não procura levar nossa atenção para outra parte nem se esforça por parecer que não é ele, mas outra pessoa que está com a palavra.
Miró, Flavão e Betão em coro:
– PUTA QUE PARIU...