segunda-feira, 31 de março de 2008

Murilo Rubião e o Desencanto do Ex-mágico: A Verdade Sociológica na Literatura Fantástica.

“O poeta é uma coisa leve, alada, sagrada,
que não pode criar antes de sentir a inspiração,
de estar fora de si e de perder o uso da razão.”
Platão

“Não me casei,
não tive filhos,
não plantei árvores,
apenas alguns arbustos.”
Murilo Rubião

“Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me;
Porque sou desvalido e pobre.”
Salmos, 85, 1


CAPÍTULO I (Introdução e Problematização)


Murilo Rubião apareceu, em 1947, com o livro de contos O Ex-Mágico, como o primeiro escritor moderno de literatura do gênero fantástico no Brasil. Mesmo assim, sua obra ainda permanece relativamente desconhecida do grande público. Seus contos tratam, invariavelmente, das angústias e solidões como conflitos sociais e filosóficos comuns ao homem moderno.

Sua obra, toda de contos e de pequena quantidade, foi escrita e publicada ao longo de cinqüenta anos. Segundo o próprio Murilo Rubião, preocupava-o mais refazer os textos do que criar textos novos, buscando cada vez mais uma forma clara e concisa, a linguagem simples e a proximidade com o real:

“Reelaboro a minha linguagem até a exaustão, numa busca desesperada da clareza, para tornar o conto o mais real possível. Com a linguagem mais depurada, a intriga flui naturalmente.” (Schwartz, 1982, p.4).

O contista mineiro também afirma ter como principais influências para seu Realismo Mágico escritores como Miguel de Cervantes, Franz Kafka e Machado de Assis, além das “intermináveis leituras” de contos de fadas, herança de sua infância. Para ele, o fantástico já existia na literatura nacional, e foi através de Machado de Assis que ele afirma ter chegado ao realismo fantástico. Pois, até então, a influência de Kafka no Brasil era diminuta no seu modo de ver:

“Quem não acredita no mistério não faz literatura fantástica. Aliás, o fantástico já existia entre nós, mas só no Machado de Assis. eu cheguei ao fantástico exatamente por ter começado pelo Machado. Sem ele, eu não chegaria ao fantástico nunca. (...) No início dos anos 40 ninguém conhecia Kafka no Brasil, a não ser Mário de Andrade. Minha geração saiu em busca de Kafka pela correspondência com o Mário. Ainda agora, acho que a influência de Kafka é muito pequena no Brasil.” (Schwartz, 1982, p.3).

Todos os seus contos possuem epígrafes bíblicas, o que fazia parecer que era um autor de cunho religioso, mas a amargura e a tragicidade de seus escritos denotam um paradoxo cristão, pois neles (nos contos) não há lugar para salvação no além-mundo – aqui encontramos em seu pensamento uma proximidade maior com Nietzsche, quando este afirma que a autenticidade é o saber raciocinar a favor da vida no eterno Vir-a-Ser, pois se há o Eterno Retorno da repetição é a repetição das diferenças. Já que “não há vida eterna no além, porque a vida já é eterna aqui em sua incessante apresentação dentro da vontade de potência.” (Nietzsche, 2002, p.16).

“A base naturalmente é a religião católica, uma religião que mais tarde não me convenceu. O catolicismo está mais ligado à morte do que à vida, e transforma mesmo a vida em morte. Daí eu ter partido não para a eternidade que me ensinaram, mas para a eternidade já na própria vida. Desse modo a vida seria apenas uma coisa circular que não chegaria nunca àquela eternidade, mas também nós nunca poderíamos nos livrar dela. Como abandonei a religião e sou hoje um agnóstico, a minha tendência é não aceitar a eternidade e também não acreditar na morte em vida. Então fico nesse círculo constante entre a eternidade e a vida, sem aceitar essa separação entre a vida e a morte.” (Schwartz, 1982, p.4)

Mesmo assim acreditava que a influência do cristianismo se manifestava inconscientemente em seus contos. Como no caso do conto “Botão-de-Rosa”, onde relata ter intencionado fazer um retrato de um hippie, mas que ao terminar percebe ter feito uma paródia com Cristo.

Formado em Direito, sua principal atividade profissional durante a vida foi a de jornalista e funcionário público. Começou como Redator da Folha de Minas, em 1939 (função que desempenhou por mais de 10 anos); Redator da Revista Belo Horizonte, em 1940, ano em que publicou seu primeiro conto, “Elvira Outros Mistérios”, na revista Mensagem; em 1942, ano em que cola grau, torna-se Diretor da Associação dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais; em 1943, Diretor da Rádio Inconfidência; 1945, ano político para Murilo Rubião, Preside a Associação Brasileira de escritores (seção de Minas Gerais) e é chefe da delegação de escritores mineiros pela qual vai ao I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, do qual foi um dos vice-presidentes:

“O congresso era eminentimente político, contra o Estado Novo. Eu assumi a liderança da delegação mineira. Tínhamos debatido em Belo Horizonte certos problemas que levantaríamos: problemas do escritor, direitos autorais, mas éramos principalmente contra a censura e a favor das eleições. Um pouco antes da sessão de encerramento, saiu publicada no jornal a Declaração de Princípios. Em 45, depois do congresso, Getúlio foi deposto.” (Schwartz, 1982, p.5)

Em 1946 se torna Oficial de Gabinete do interventor do Estado; em 1948, chefe de divisão da Secretaria da Agricultura e diretor do Serviço de Radiodifusão do Estado de Minas Gerais; em 1951, Oficial de Gabinete do governador Juscelino Kubtschek, e no ano seguinte (1952) torna-se chefe do mesmo Gabinete; entre 1956 e 1961, viveu em Madri, período em que foi Chefe do Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil e adido junto à Embaixada Brasileira na Espanha, onde estreitou relações com João Cabral de Melo Neto; em 1960, foi condecorado pelo governo espanhol com a comenda Isabel, a católica (grau de Cavaleiro).

“Sofri. Eu não sabia o que era ser estrangeiro. Aliás, eu era muito bem tratado. Mas para mim, sendo mineiro, era muito mais trágico. Quem esteve lá na Espanha não era apenas um brasileiro, mas um mineiro. O lado positivo foi a leitura. Li desbragadamente durante esses quatro anos. Só escrevi “Teleco, o Coelhinho”. Eu estava no maior desânimo com a literatura. Quando fui para a Espanha, estava pensando em não escrever mais.” (Schwartz, 1982, p.5)

Em 1961, reassume a sua função pública em Minas Gerais e é designado para a redação do jornal Minas Gerais; é, em 1966, encarregado de organizar o suplemento literário do Minas Gerais, sendo seu primeiro editor; em 1967 ganha a chefia do Serviço de Radiodifusão do Estado; em 1968, vira membro do Conselho Estadual de Cultura; em 1969, presidente da Fundação de Arte de Ouro Preto; e em 1975, presidente do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais. Depois de algum tempo aposentou-se como diretor de publicações e divulgação da Imprensa Oficial, do jornal Minas Gerais, e só veio a falecer em 1991.

Por ser um escritor que inaugurou o gênero da literatura fantástica no Brasil – que trabalha temas como o maravilhoso, o sobrenatural, o inexplicável, o estranho, os rompimentos com o real – sua obra esta fora do chamado cânone literário brasileiro, personificado especialmente pelos primeiros modernistas paulistas. Isso fez com que ele ficasse praticamente despercebido pela crítica e pelo público nos anos 40 e 50, até meados dos anos 70, quando o boom da literatura fantástica colocou a América Latina no mapa literário internacional, com escritores como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Gabriel Garcia Marquez. E é quando Murilo Rubião é traduzido para outros idiomas, como o alemão (O Pirotécnico Zacarias (1974) – Der Feuerwerker Zacharias) e o inglês ( O Ex-Mágico (1947) – The Ex-Magician).

“Eu tinha muita dúvida se conseguiria fazer só literatura. Tive logo certeza de que não podia ser um escritor profissional. Especialmente por escrever um gênero que na época era de pouca aceitação. Muitos diagnosticaram que eu estava escrevendo para as décadas vindouras.” (Schwartz, 1982, p.4)

Com o desenvolvimento de novas perspectivas de análise literária, o prestígio de escritores do gênero fantástico como Franz Kafka e a consolidação da industrialização brasileira permitiram que a crítica, apesar de não ter sido feito um estudo profundo sobre sua obra, reconhecesse a qualidade literária do escritor. Já a partir do final dos anos 70, com o fim do chamado milagre econômico, é possível perceber que a crítica toma um rumo diferente e passa a entender sua obra como um testemunho da modernidade periférica brasileira.

Em Murilo Rubião, o mundo gira numa modernidade caótica. A angustia causada pela burocracia das instituições dos novos tempos e a solidão encontrada nos desencontros dos aglomerados urbanos nos remete a uma certa fragilidade de comportamento desencadeada por uma falta de identidade e solidariedade, que há muito foi corrompida pela sociedade no homem e pelo homem na estrutura social.

O “desencantamento do mundo” é uma idéia freqüente e explícita em sua obra. Este mundo manipulado pela razão científica e pela técnica burocrática enterra cada vez mais o mundo mágico e excepcional de nossos ancestrais; e, pelo contrário, essa dominação não nos trouxe salvação ou felicidade... Sequer algum otimismo...

Portanto, vou me deter no conto O Ex-Mágico da Taberna Minhota* de seu primeiro livro. No qual pretendo analisar sua idéia de “desencanto do mundo” relacionada com a burocratização e racionalização do mesmo, e captar sua “verdade” sociológica via literatura fantástica. O texto como sujeito transcendental desvendando a estrutura da consciência social feita pelo autor.

Quero que o leitor desta monografia saiba de antemão que pretendo esmiuçar o texto de Murilo Rubião, fazendo paralelo às analises sociológicas a leitura do conto na íntegra. Viso assim tornar mais agradável uma interpretação e trabalhar melhor a explicação que o próprio conto induz e revela em suas poucas linhas; além de, quem sabe, despertar o interesse do leitor para uma possível leitura desse escritor fantástico de literatura fantástica.


CAPÍTULO II (Max Weber, Stuart Hall e o Método)


A teoria sociológica, por vezes, pode se nos apresentar maneiras não menos acertadas e interessantes de análise dos textos literários. Basta-nos encontrar as chaves certas para a adaptação, ou melhor, para a confluência entre objeto teórico e objeto literário. Nesse intuito, explanarei aqui duas correntes de pensamentos que creio terem afinidade com minha questão sócio-literária. De um lado, Max Weber com sua idéia de “desencantamento do mundo” via técnica, burocracia e racionalidade, na modernidade; e, do outro, Stuart Hall, que levanta a questão do descentramento do sujeito e deslocamento da identidade na modernidade tardia, ou pós-modernidade.

Max Weber começa por despertar interesse na crise de valores na modernidade, que na sua interpretação provinha da estrutura capitalista de produção. Nesse sentido é que se considera uma parte da obra de Weber como uma tentativa de completar o materialismo econômico de Marx, adicionando-lhe um materialismo político e militar.

“Weber partilha, com Marx, de uma tentativa de colocar os fenômenos “ideológicos” nalguma correlação com os interesses “materiais” das ordens econômica e política. Weber tem um olho agudo para as “racionalizações”, ou seja, para as “superestruturas fictícias” e para as incongruências entre a afirmação verbal e a intenção real.” (Mills, 1968, p.65)

Mas não é só com os “interesses” e “ideologias” que a sociologia de Weber está relacionada com o pensamento de Marx. Há também a tentativa comum de desvendar as inter-relações em todas as ordens institucionais que constituem a estrutura social. Já que, para Weber, todos os sistemas institucionais (militar, religioso, político e jurídico) estão relacionados funcionalmente com a ordem econômica de várias maneiras. Contudo, para Marx, a economia capitalista moderna é basicamente irracional, irracionalidade resultante da contradição entre o progresso tecnológico racional das forças de produção e as cadeias de propriedade privada, lucro privado, concorrência de mercado não controlada e etc... Já para Weber, o capitalismo moderno não se apresenta nem um pouco irracional, pelo contrário, ele materializa de forma burocrática a racionalidade. O conceito de burocracia racional é o contraposto ao conceito marxista de luta de classes. “No momento”, disse Weber, “a ditadura do funcionário e não a do trabalhador, está a caminho”.

“Toda estrutura é dinâmica, e pela sua anonimidade obriga o homem moderno a tornar-se um perito especializado, um “profissional” preparado para uma carreira especial dentro de canais preestabelecidos. O homem está, assim, preparado para a sua absorção pelo barulhento processo da máquina burocrática.” (Mills, 1968, p.67)

Aqui, a racionalidade é vista como contrária à vida pessoal. Weber identifica a burocracia com a racionalidade e a racionalização como mecanismo de opressão do mundo moderno. Para ele, é deplorável o sujeito que a mecanização e a rotina burocrática seleciona e forma. Seria um profissional limitado, pronto pra seguir carreira, desejoso de segurança e recompensas, mas de ambições moderadas. “Esse tipo de homem é deplorado por Weber como uma criatura de rotina limitada, carente de heroísmo, espontaneidade humana e inventividade.” (Mills, 1968, p.68)

Em Weber, o uso da técnica exprime-se principalmente no que ele chama de “desencantamento do mundo” (frase essa de Friedrich Schiller), que é decorrente de um processo de intelectualização entrelaçado ao desenvolvimento do capitalismo racional, que teve como alguns de seus alicerces o comportamento ascético e sistematizado dos protestantes calvinistas. A partir de então, o mundo passou a ser dominado pela técnica burocrática que aparece nos seus escritos num tom pessimista, uma vez que tal expressão da racionalidade destrói mais e mais a magia e a criatividade humana.

“Até mesmo uma área de experiência tão “interiorizada” e aparentemente subjetiva como a da música se presta a um tratamento sociológico sob o conceito de “racionalização” de Weber. A fixação de padrões de acordes, através de uma notação mais concisa, e o estabelecimento da escala bem temperada; a música tonal “harmoniosa” e a padronização do quarteto de sopro e dos instrumentos de corda como núcleo da orquestra sinfônica. Tais fatos são vistos como racionalizações progressivas.” (Mills, 1968, p.69)

Há uma tendência geral à racionalização secular. E a proporção e a direção que essa racionalização toma são medidas negativamente na dimensão em que os elementos mágicos do pensamento são deslocados, ou positivamente, dependendo das proporções que as idéias ganham coerência sistemática. Então a racionalização passa a ter uma variedade de significados por sua diferença social e histórica. Daí existirem as descontinuidades históricas no processo de racionalização. Estruturas institucionais podem desintegrar-se e formas mais rotineiras da vida social podem ser insuficientes para dominar um estado crescente de tensões, pressão e sofrimento. É em meio a essas crises que surge o conceito de “carisma” e do líder carismático.

O carisma, termo que Weber pegou emprestado de Rudolf Sohm, significa literalmente “dom da graça”. O termo é usado por ele para caracterizar o líder auto-indicado; este líder é seguido pelos que estão em desgraça e seguem-no por acharem sê-lo extraordinariamente dotado. Milagres, revelações, heroísmos... São suas marcas. O fracasso, sua ruína. Mas o movimento carismático também pode ser rotinizado no tradicionalismo e na burocratização.

“O revolucionismo emocional é seguido pela rotina tradicionalista da vida cotidiana; o líder cruzado e a própria fé desaparecem ou, o que é ainda mais verdadeiro, a fé torna-se parte da fraseologia convencional (...) nesse caso, tal como ocorre com a máquina de todo líder, uma das condições para o êxito é a despersonalização e rotinização, em suma, a proletarização psíquica, no interesse da disciplina. Depois de ascenderem ao poder, os seguidores de um cruzado habitualmente degeneram muito facilmente numa camada comum de saqueadores.” (Weber apud Quintaneiro,1999, p.143)

Segundo Weber, a burocracia das sociedades modernas é caminho e fortalecimento da tendência à racionalização. O crescimento da burocratização se faz mediante um aparato institucional, através do qual a burocracia exerce um domínio baseado em normas estabelecidas. O poder se burocratiza na forma de Estado Moderno e, por delegação ou tutela, homens se submetem a outros na consolidação desse processo.

Max Weber chega a concluir, tristemente, que em nenhum outro lugar se experimentou de tal forma, como no ocidente, a absoluta e completa dependência de sua existência – econômica, política e técnica – em relação a uma organização de funcionários públicos especialmente treinados. A técnica burocrática continuaria a possibilitar o domínio de uns sobre outros e esse desenfreado domínio técnico burocrático trazia consigo um desencantamento que se alastrava na vida dos indivíduos. E a razão, a própria idéia de “intelectualização”, ao ser impregnada no dia a dia, tornava os homens cada vez mais medíocres e angustiados.

Partindo para a análise de Stuart Hall, caímos na questão da identidade cultural na pós-modernidade. Para Hall, as velhas identidades entraram em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, que antes era visto como um sujeito unificado.

Desestabiliza-se, então, o mundo social e desloca-se as estruturas e processos centrais das sociedades modernas; com os quadros de referência abalados, que davam aos indivíduos pilares de sustentamento no mundo social, surge a assim chamada “crise de identidade”.

Stuart Hall afirma que as identidades modernas estão sendo descentradas, ou deslocadas e fragmentadas, mas admite que o próprio conceito de identidade é, por demais, complexo, “muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na Ciência Social contemporânea para ser definitivamente posto à prova” (Hall, 2001, p.8). No entanto, argumenta que, para os teóricos que acreditam nesse fenômeno, esse colapso nas identidades modernas se desenvolve da seguinte forma:

“Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.” (Hall, 2001, p.9)

E justifica o argumento citando o crítico cultural Kobena Mercer, pois a identidade é algo que só entra em questão quando está em crise, quando a dúvida e a incerteza deslocam algo que se supõe fixo, coerente e estável.

Em seguida, Hall nos dá, simplificadamente, três concepções de identidade: 1) a do “sujeito do Iluminismo”; 2) a do “sujeito sociológico” e 3) a do “sujeito pós-moderno”.

A identidade do sujeito do Iluminismo estava baseada na concepção de pessoa humana, um indivíduo centrado, unificado e dotado de razão, de consciência e de ação. Esse centro emergia pela primeira vez no nascimento do sujeito e consistia num núcleo interior, desenvolvia-se ao longo da sua vida, mas permanecia essencialmente o mesmo durante a existência do individuo. Esse centro do eu era a identidade de uma pessoa, transformando essa concepção numa visão individualista do ser.

Para a noção de sujeito sociológico, o individuo não é autônomo nem auto-suficiente – mesmo que ainda haja uma essência, o “eu real”, formado e modificado no diálogo contínuo com os mundos culturais – o ser é formado na relação com o mundo em que habita; com as pessoas que mediavam os valores, sentidos e símbolos da cultura que o cercavam. Essa noção refletia a crescente complexidade do mundo moderno; nesse caso, a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. São os interacionistas simbólicos as figuras-chave na elaboração dessa concepção.

A identidade, nesse caso, preenche o espaço entre o exterior e o interior, ou seja, entre o mundo público e o mundo pessoal. Assim, o sujeito é atado à estrutura social, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. É justamente a mudança disso tudo, estrutural e cultural, que produz o que Stuart Hall chama de sujeito pós-moderno.

“O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se provisório, variável e problemático.” (Hall, 2001, p.12).

Não existe mais identidade unificada, completa, segura e coerente; isso é uma fantasia, afirma Hall. Ela, a identidade, virou uma “celebração móvel”. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos históricos. Assumimos identidades possíveis, com as quais podemos nos identificar temporariamente. Ela é transformada continuamente em nossa relação com os sistemas culturais que nos rodeiam. “As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente.” (Hall, 2001, p.14).

Mas a modernidade não é definida como uma convivência e experiência com essa mudança veloz e interminável, e sim com uma forma altamente racional e reflexiva de vida. “O Cidadão individual tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas e administrativas do estado moderno.” (Hall, 2001, p.30). As sociedades da modernidade tardia têm como característica principal a “diferença”, essas diferenças e antagonismos sociais produzem uma variedade de “posições de sujeito”, ou melhor, de identidades individuais para os agentes. Contudo, se essas sociedades não se desintegram totalmente, não é porque estão unificadas, mas, porque esses diferentes elementos e identidades podem ser conjuntamente articulados.

“A sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está constantemente sendo “descentrada” ou deslocada por forças fora de si mesma” (Hall, 2001, p.17).

Com efeito, é nessa fragmentação do sujeito e da sociedade, nesse deslocamento e desencanto, que vamos encontrar um contexto interessantíssimo da perturbação do indivíduo e de sua identidade, que estava começando a desenvolver-se nos movimentos estéticos e intelectuais relacionados com o surgimento do modernismo. Revela-se, então, o indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra a multidão da metrópole anônima e impessoal.

O Boêmio e O Flâuner, que Walter Benjamin analisou no seu livro sobre a Paris de Charles Baudelaire; o metamorfoseado “Gregor Samsa”, de Kafka, que acorda diferente e já não se adapta ao mundo, ou o senhor “K”, de O Processo, vitimado pela burocracia mesmo desconhecendo sua falta; Mário de Andrade com seu anti-herói, Macunaíma, capaz de façanhas fabulosas; ou, quem sabe ainda, o jovem “Werther” de Goethe, criando uma onda de suicídio pela Europa.

Nesse sentido é que os temas de Murilo Rubião se enquadram tanto na teoria Weberiana do desencantamento do mundo, quanto na questão da identidade levantada por Stuart Hall, com sua parodização da realidade e sua ficção “autobiográfica”, expondo a condição amarga do homem no mundo. Esses conflitos se travam cotidianamente dentro dos campos institucionais historicamente construídos para defesa e funcionamento dos interesses sociais, constituindo-se num aparato material e ideológico para as diversas esferas onde se organiza a sociedade. Vemos aí uma tentativa de superação de uma cultura política repressora.

O personagem de Murilo Rubião é um elemento tencionado entre a previsibilidade da norma empírica e a irrealidade de sua figuração e transita em uma atmosfera de fabulação fantástica que descamba para o absurdo. Sua identidade é deslocada e fragmentada, pois sua história pessoal é nula, visto que não tem passado nem lembranças.

Os poderes mágicos incontroláveis, a falta de domínio das próprias habilidades, a própria condição de mágico como um fardo, a falta de entendimento com o mundo moderno e o estranhamento constante com as pessoas, nos mostram claramente sua crítica à fugacidade, ao tecnicismo, ao automatismo do homem moderno, que, estranho a si mesmo, tenta realizar no exterior a realização interior que lhe falta. O homem moderno vive dentro de uma sociedade extremamente racionalizada. A sua vida é setorizada. Ele tem que assimilar um sistema racional por completo. Só que isso não basta e ele busca incessantemente outra dimensão existencial.

Por outro lado, o olhar crítico metodológico que pretendo utilizar na abordagem do texto precisa ser um método que me deixe livre para penetrar nas estruturas transcendentais do texto e no interior da consciência do autor, mas sem psicologismos. Esse olhar precisa mergulhar no mundo da obra e reproduzir em análise o que encontrar o mais exata e imparcialmente possível. Esse seria, então, um olhar tipicamente fenomenológico: a busca de compreensão de qualquer fenômeno de maneira total e pura é apreender o que nele há de essencial e imutável.

“Os objetos podem ser considerados não como coisas em si, mas como coisas postuladas ou pretendidas pela consciência. Toda consciência é consciência de alguma coisa: no pensamento, tenho consciência de que meu pensamento está “voltado para” algum objeto. O ato de pensar e o objeto do pensamento estão internamente relacionados, são mutuamente dependentes. Minha consciência não é apenas um registro passivo do mundo, mas constitui ativamente esse mundo, ou “pretende” fazê-lo.” (Eagleton, 1997, p.76).

Essa fenomenologia tenta examinar não apenas o que por acaso se percebe quando se olha para determinado objeto, porém a essência universal do objeto e o ato de percebê-lo, ou seja, desvendar a estrutura da consciência e desnudar o fenômeno em si. “Ser” e “significar” estão sempre ligados um ao outro. “Não há objeto sem sujeito, e não há sujeito sem objeto.” (Eagleton, 1997, p.79). Sujeito e objeto são as duas faces da mesma moeda.

Por outro lado, essa fenomenologia pura de Husserl peca quando isola o objeto real do seu contexto histórico concreto, do seu autor e das suas condições de produção, sendo assim um tipo de crítica idealista, essencialista e anti-histórica. Para a crítica fenomenológica, a linguagem literária não passa muito de uma explanação de seus significados internos. E o reconhecimento de que o significado é histórico foi o que levou Heidegger a romper com o sistema de pensamento de Husserl. Heidegger estende a fenomenologia a uma hermenêutica; isso porque, para ele, os significados humanos são indubitavelmente históricos, são uma questão de relações práticas entre indivíduos sociais.

Para esse método fenomenológico hermenêutico, os sujeitos surgem dentro de uma realidade que não podem objetivar plenamente, e essa realidade inesgotável em significados (que abarca tanto “sujeito” quanto “objeto”) nos gera em uma medida e nós a geramos em outra. “A existência humana é um diálogo com o mundo, e ouvir é uma atividade mais reverente do que falar.” (Eagleton, 1997, p.86).

“Se a existência humana é constituída pelo tempo, é igualmente constituída pela linguagem. A linguagem para Heidegger não é um simples instrumento de comunicação, um recurso secundário para expressar “idéias”: é a própria dimensão na qual se move a vida humana, aquilo que, por excelência, faz o mundo ser. Só há “mundo” onde a linguagem, no sentido especificamente humano.” (Eagleton, 1997, p.87).

Isso nos faz desaguar facilmente em Wittgenstein, para quem o significado não é apenas algo exposto pela linguagem e sim produzido por ela. Só temos os significados e as experiências que temos por conta de uma linguagem na qual eles se processam. E imaginar uma linguagem é também imaginar toda uma forma de vida social, pois não pode haver uma linguagem particular se nossa experiência enquanto indivíduos é social em suas raízes.

Fico, assim, com essas formas de abordagem, uma primeira essencialista e a segunda existencialista. Isso trará a liberdade necessária para tomar o texto como me for melhor e mais conveniente. Até porque o que está em jogo aqui é o alcance que posso dar a uma específica teoria sociológica dentro de um contexto literário-fantástico-ficcional, comparando passagens do conto de Murilo Rubião a uma visão social da realidade extraída de textos científicos de Max Weber e Stuart Hall.


CAPÍTULO III (Análise da Obra)


Se para Weber a técnica burocrática e a racionalização do mundo moderno escravizam o homem e tolhem sua sensibilidade de criação e, para Hall, o indivíduo sofre de uma crise de identidade devido a uma mudança estrutural na sociedade, que desloca o sujeito em sua cultura, diminuindo as fronteiras de classe, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, para Murilo Rubião é impressionante perceber, em seu personagem “O Mágico”, a verossimilhança e relação possível com essas teorias sociológicas.

Assim como, para Max Weber, a utilização da técnica realiza, sobretudo, um “desencantamento do mundo”, via intelectualização junto com o desenvolvimento do capitalismo racional, também para Murilo Rubião, a técnica burocrática, na qual o mundo passou a ser dominado, esvazia o homem de significado e encanto. Assim começa o conto:

Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.
Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores.
Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, sem infância ou juventude. (p.9)

O mundo dominado pela técnica burocrática e pela racionalidade destrói cada vez mais a magia da vida e sufoca o homem, tolhendo sua criatividade. E sua ausência de identidade demonstra uma crise existencial deflagrada em sua personalidade amarga e sem lembranças. Um sujeito que não sabe quem é, anônimo e sem esperança de se descobrir n’alguma atividade que desenvolva, que não experimentou a vida e que, portanto, não se sente preparado para enfrentá-la.

Esse processo de racionalização burocrática da sociedade capitalista moderna, juntamente com sua crise de identidade, angustia o autor, que prossegue:

Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.
O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado. (p.9-10)

Esse tédio e apatia com relação ao mundo e a si mesmo é prova cabal de sua insatisfação com o meio e com os outros. O Mágico não se assusta ao se descobrir mágico, mas gera espanto e admiração nos indivíduos inseridos no sistema que, ao tentarem descobrir sua técnica, não obtém respostas racionais e objetivas, apenas lamentos. Observe-se que a condição do mágico, neste momento, não aparece como ponto de partida para descoberta de sua identidade, o personagem não tem nome próprio e quando Rubião inicia sua narrativa ele já é um funcionário público e um Ex-Mágico decadente – eis aí um pouco do caráter de paródia autobiográfica.

“Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito como uma mudança de uma política de identidade (de classes) para uma política de diferença” (Hall, 2001, p.21).

Para Weber, essa tendência à racionalização do mundo capitalista invade todas as esferas da vida social. Das manifestações políticas às manifestações artísticas, todas tendem à racionalização e são “um dos meios através do qual essa tendência à racionalização se atualiza nas sociedades ocidentais é a burocracia” (Quintaneiro, 1999, p.138). Weber acredita que “todas as instituições, tenham elas fins ideais ou materiais, organizam-se e atuam através do instrumento cada vez mais universal e eficaz de dominação que é a burocracia” (Quintaneiro, 1999, p.139).

Mas não podemos subtrair do mundo social a esfera econômica. O que o protagonista ganha ao se descobrir e ser descoberto como mágico é apenas um emprego como animador dos fregueses da Taberna Minhota, que não dura muito por causa de seu hábito de distribuir almoços gratuitos para a platéia, sendo depois passado pelo dono do restaurante a um Circo-Parque. Como diria o próprio Weber, “o suporte do cálculo sempre foi o dinheiro”:

“Em sua forma primitiva, todo afanar-se dos homens por sua alimentação é muito semelhante aquilo que nos animais tem lugar sob o império dos instintos. Mesmo assim, a ação econômica conscientemente orientada pela devoção religiosa, a emoção guerreira, os impulsos de piedade ou outros afetos semelhantes, encontram-se pouco desenvolvidos em seu grau de calculabilidade.” (Weber apud Quintaneiro, 1999, p.138).

No conto de Murilo Rubião, essa calculabilidade se encontra “suprimida” pelo absurdo da literatura fantástica, tornando-a racionalmente pouco desenvolvida e parcialmente ignorada pelo personagem: ele não se importa com dinheiro ou sucesso; pelo contrário, o sucesso o angustia para depois tornar sua vida insuportável. Ele vai do restaurante ao circo como se seguisse um destino inexorável e que pouco lhe importava. Talvez naquele momento o nosso personagem estivesse sendo absorvido de fato pela estrutura social.

Sem meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes mágicos.
O homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o conseqüente acréscimo dos lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz que, posto a par das minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o que se prevenisse contra meus truques, pois ninguém estranharia se me ocorresse a idéia de distribuir ingressos graciosos para os espetáculos. (p.10)

Mas mesmo sem vocação, e rejeitando de alguma forma essa calculabilidade da lógica capitalista, parece ser impossível não segui-la e ter liberdade para fugir à ordem estabelecida, o que parece encontrar paralelo em Weber:

“Essa ordem está até hoje ligada às condições técnica e econômica da produção pelas máquinas, que determina com força irresistível a vida de todos os indivíduos nascidos sob este regime, e não apenas os envolvidos diretamente na aquisição econômica” (Weber, 2003: 135).

Para Weber, somos completamente dependentes, em nossa existência, das condições econômicas, políticas e técnicas. Os funcionários públicos treinados técnica, comercial e, acima de tudo, legalmente, desempenham as funções mais importantes da vida diária da sociedade. Não haveria mais “forças misteriosas incalculáveis”; agora tudo é dominado pelo cálculo e pela técnica – mesmo que estes não expliquem nada e não tragam mais conhecimento.

“A intelectualização e racionalização crescentes não significam, pois, um crescente conhecimento geral das condições gerais da nossa vida. Seu significado é muito diferente; significam que se sabe ou se crê que, a qualquer momento que se queira, pode-se chegar a saber que não existem em torno de nossa vida poderes ocultos e imprevisíveis, mas que, pelo contrário, tudo pode ser dominado pelo cálculo e pela previsão. Isto quer dizer simplesmente que se excluiu a magia do mundo.” (Weber apud Quintaneiro, 1999, p.141).

Portanto, essa intelectualização desencanta cada vez mais o mundo na tentativa frustrada de explicação e de operacionalização do nosso cotidiano através da técnica burocrática. O deslocamento de sua identidade também é visível no seu espetáculo do Circo-Parque Andaluz, quando, contrário às recomendações do seu último patrão, exerce com maestria a sua função de mágico. Agrada ao público de forma excepcional e gera lucro astronômico aos donos da companhia. No seu grande truque de encerramento de sua apresentação, transforma um jacaré numa sanfona e toca o Hino Nacional, mas é o hino nacional da Conchinchina. O hino é um dos símbolos mais importantes de uma nação. Aqui ele quebra com a expectativa do leitor e da platéia, e faz sua nacionalidade surgir como signo ausente.

Contrariando as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi exemplar. As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões, como deram fabulosos lucros aos donos da companhia.
A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Conchinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob meu olhar distante. (p.10-11)

O desencanto do personagem é tanto que se torna indiferença. A sua angústia cresce ao se ver aplaudido pela sua mágica num mundo que nega o mágico, o sobrenatural. E, quiçá, sua mágica não seja mera técnica... Um mundo sem encantos limita o poder de decisão e de escolhas dos indivíduos. Principalmente para um homem sem identidade, sem passado e sem futuro.

O gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com minha indiferença pelas palmas da assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado.
Com o crescimento da popularidade a minha vida tornou-se insuportável. (p.11)

Esse repúdio ao carisma que Murilo Rubião expressa em seu personagem é de um pessimismo cético e inabalável, assim como Weber em relação à produção de mudanças significativas nas relações marcadas pela racionalidade. Já para Hall, os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, sendo essa multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis. Mas O Mágico de Rubião não sabe o que fazer com sua fragmentação de identidade: embora reconheça as diversas figuras estranhas que tira de dentro de si, não sabe que destino dar a elas. Na verdade preferiria não tê-las.

Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros.
Se, distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois outra. Por fim estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar.
Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma.
Situação cruciante. (p.11-12)

Preso ao seu poder de mágico e impotente diante dele, nosso personagem se lastima. A técnica domina o homem. A dominação racional quebra com os elementos sensíveis puramente pessoais, a burocracia elimina todos os elementos irracionais que fogem ao cálculo, e para sua ironia (ou desespero), sua mágica, que lhe dava emprego e a indesejada fama, também lhe trazia problemas com a dominação racional-legal; “o sistema de leis, aplicada judicial ou administrativamente de acordo com determinados princípios, vale para todos os membros do grupo social.” (Weber apud Quintaneiro, 1999, p.139).

Quase sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer a delegacia e ouvir pacientemente da autoridade policial ser sr proibido soltar serpentes nas vias públicas.
Não protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando meu propósito de não molestar ninguém. (p.12)

“Para que o Estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder.” (Weber apud Mills, 1968, p.99). É então que O Mágico começa a tomar medidas desesperadas buscando solução para seu infortúnio. Nunca desejou ser mágico e agora menos ainda. Precisava se livrar daquele mal que o enevoava a vida e que começava a trazer-lhe transtornos de maior densidade, além da angústia que já lhe causava.

Também, à noite, em meio a um sono tranqüilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido.
Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício. (p.13)

Não lhe restava outra saída senão a morte. Decisão prontamente tomada pelo Mágico. A grande aflição do homem moderno, ciente de um passado vazio de sentido e significado, é viver este instante agonizante, eterno, imbuído de uma falta absoluta de horizontes. É a constatação e o desconsolo de ser escravo de seu próprio poder. De estar impregnado de rotina e cotidiano.
“Uma vez que o sujeito moderno emergiu num momento particular (seu “nascimento”) e tem uma história, segue-se que ele também pode mudar e, de fato, sob certas circunstâncias, podemos mesmo contemplar sua “morte”.” (Hall, 2001, p.24).

Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu desconsolo.
Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram.
Na manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.
– O que desejam, estúpidos animais?! – gritei, indignado.
Sacudiram as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:
– Este mundo é tremendamente tedioso – concluíram.
Não consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava morrer, vítima de fatal indigestão.
Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.
O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao espaço.
Senti uma leve sensação de vizinhança da morte: logo me vi amparado por um pára-quedas. Com dificuldade, machucando-me nas pedras sujo e estropiado, consegui regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola.
Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.
Não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis.
Rolei até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência.
Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos.
Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado. (p.13-14-15)

Agora, de uma vez por todas, O Mágico se encontra com seu trágico destino numa repartição pública. A morte virá realmente? Mesmo que não venha, o suicídio do Mágico havia se consumado, ela agora caminharia para a condição de Ex-Mágico. E parece que mais uma vez a ironia de uma autobiografia se faz presente: Rubião, que sempre foi funcionário público (como muitos outros escritores modernistas de sua época), condena seu personagem ao mesmo fardo.

Outra coisa interessante é o fato de Rubião citar o ano do início do suicídio do Mago: 1930. Ele não usa essa data casualmente, até porque não é comum ao autor usar esse tipo de informação em seus contos. O ano de 1930 estava fortemente marcado na memória de Murilo Rubião: foi a data da revolução de Getúlio Vargas e da implementação de um novo projeto político nacional. Projeto esse que contaria com o apoio de vários modernistas que se tornariam funcionários públicos: Mário de Andrade trabalharia no Departamento de cultura de São Paulo, Cassiano Ricardo no Departamento da Imprensa e Propaganda, Ronald de Carvalho seria nomeado Chefe da Casa Civil, e por aí vai...

Começa, então, outra fase de desgosto para o nosso, agora, Ex-Mágico. A vida no funcionalismo público logo se tornou odiosa. O maior contato com as pessoas na secretaria causava-lhe náuseas, estava condenado a um trabalho insignificante, monótono, tedioso e o pior: burocrático.

1930, ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da minha existência, ante o espelho da Taberna Minhota.
Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo.
Quando era mágico, pouco lidava com os homens – o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam.
O pior é que, sendo diminuto meu serviço, via-me na contingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou-me a revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida. (p.15-16)

Entretanto, eis que, de repente, surge-lhe o amor por uma colega de trabalho, uma datilógrafa. Emergiu, então, uma concepção mais social do sujeito. O sujeito humano biologizado. Como responder às fronteiras de sua sexualidade, se nunca tivera uma experiência sexual? “As partes “femininas” do eu masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas na vida adulta.” (Hall, 2001, p.39).

O amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas inquietações.
Distração momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me declarar a minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental!
1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.) (p.16)

Agora já era tarde, a burocracia destruíra para sempre com sua capacidade de fazer magias. O domínio da técnica burocrática eliminou os “encantos” do protagonista num mundo sem encanto. Ele, que agora era um Ex-Mágico, não podia mais fazer uso de seu poder a seu favor. Estava limitado a sua “vidinha” rotineira e cotidiana de funcionário publico, um homem sem identidade e sem saída. Na racionalização, as formas mágicas são banidas da explicação do mundo; e como explicar um mundo multifacetado e sem magia? “O limitar-se ao trabalho especializado, com a renuncia à faustiana universalidade do homem por ela subentendida, é uma condição para qualquer trabalho válido no mundo moderno; daí que a realização e a renuncia, hoje, inevitavelmente se condicionam uma à outra.” (Weber, 2003, p.134).

Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo.
Fitou-me por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez.
Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel amarotado – fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.
Revolvi, ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.
Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia. (p.16-17)

E assim vai acabando a odisséia do Ex-Mágico da Taberna Minhota: cansado, derrotado, solitário e infeliz. Resta-lhe apenas uma lembrança parca e a ilusão retrospectiva que lhe causa tremendo arrependimento. A incapacidade de pensar e de se comunicar haviam tomado conta do personagem: descentrado, deslocado e fragmentado; agora tido como louco.

Para Nietzsche, a sociedade banaliza a vida e o peso da tradição esmaga os espíritos criadores; daí a idéia de “espírito de rebanho” ou “moral de rebanho”, pois para ele a democracia, o “poder do povo”, não existe. O que há são relações de forças em que ou se domina ou se é dominado. Criar os próprios valores não é para “ovelhas”, mas para os “espíritos livres”.

“Depois da devastadora crítica feita por Nietzsche aos “últimos homens” que “inventaram a felicidade”, posso deixar totalmente de lado o otimismo ingênuo no qual a ciência – isto é, a técnica de dominar a vida de quem depende da ciência – foi celebrada como o caminho para a felicidade. Quem acredita nisso? – à parte, algumas poucas crianças grandes que ocupam cátedras universitárias ou escrevem editoriais” (Weber, 1974, p.169)

Assim como para Weber também não existe liberdade na democracia, pois, a democracia necessitaria em sua extensão fundamentalmente da formulação de novos regulamentos burocráticos, para então assegurar sua impessoalidade diante de todo e qualquer indivíduo. Portanto, a técnica continuaria proporcionando o domínio de uns sobre outros. E criando um homem animal de rebanho, útil, trabalhador, multiplamente utilizável e obediente.

Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.
Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.
Tenho a impressão que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.
Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico.
Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a terra de extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas. (p.17-18)


Breve Conclusão


A literatura sempre surpreende quando se trata de interpretação ou de (des)construção do mundo. E a sociologia da literatura se faz importante na análise dos fenômenos literários por ser de grande valia sua perspectiva, na medida em que nos fornece novas visões a respeito dos objetos literários e da realidade social, neles presentificados.

Tendo como expoente nacional nesse gênero o pioneiro escritor Murilo Rubião, a literatura fantástica é uma corrente literária ainda pouco conhecida no Brasil e carente de análises literárias e sociológicas mais profundas. Com personagens bizarros e enredos de realidade absurda, Rubião estabelece de forma nada convencional sua idéia de conflito entre indivíduo e sociedade, entre agente e estrutura.

Tentei aqui, vislumbrar uma pseudo-analogia entre o conto O Ex-Mágico da Taberna Minhota e a idéia de Max Weber de “Desencanto do Mundo”, fenômeno tido como típico do mundo moderno capitalista e decorrente da crescente racionalização e burocratização dos meios de produção e das relações humanas, tendo como contraponto a questão da fragmentação da identidade, levantada por Stuart Hall, fenômeno mais recente e observado no final do século XX.

E a relação, de fato, faz sentido. (Talvez porque, como achava Schelling, o objeto artístico seria um símbolo concreto do absoluto e só o artista seria capaz de transformar o absoluto em concreto, mediante sua criação estética.) É verossímil encontrar no conto do Ex-Mágico um conflito entre o homem e a estrutura burocrática que o cerca, a amargura e desilusão de se encontrar num mundo pronto, onde não há mais nada para criar, nem em mágica.
Assim nosso herói se vê mergulhado na desgraça racional-burocrática da tecnocracia e depois percebe que seu mundo mágico de outrora foi totalmente apagado e consumido por ela.

É preciso ser mais que leitor para analisar os contos de Murilo Rubião, é preciso um olhar aguçado para interpretar e decodificar na sua narrativa fantástica a linguagem simbólica que confere sua ligação com o mundo real, usando situações insólitas em contextos fantásticos. Pois, resumindo Drummond a respeito do ex-mágico, por mais absurdas que sejam as relações entre as coisas e os homens, não são mais absurdas do que as condições de vida normal controlada pela razão...

E como disse-lhe em carta o próprio Antônio Cândido, comparando-o a outros escritores geniais: “porque, também para você, o problema da identidade e da pluralidade do ser é hábito.” (SCHWARTZ, 1981, P.103)


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ZAGURY, Eliane (1071). A Palavra e os Ecos. Petrópolis, RJ, Editora Vozes.

* Uso, como referência, a seguinte edição: Murilo Rubião. O Pirotécnico Zacarias e outros contos escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 1999. Todas as citações do conto serão retiradas dessa edição e as páginas serão colocadas entre parênteses.